TÍTULO (duas hipóteses)
Miguel Miranda preside ao conselho diretivo do Instituto Português do Mar e da Atmosfera desde 2013. Licenciado em Física (Geofísica) em 1981, doutorado em 1990, tem centrado a sua atividade de investigação no geomagnetismo, geofísica marinha e riscos naturais, em particular tsunamis.
ENTREVISTA
O último relatório de avaliação do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) foi classificado por António Guterres como “um alerta vermelho para a humanidade”. O que é que está a acontecer ao clima na Terra?
O que está a acontecer é que a temperatura média continua a aumentar, porque os gases de efeito de estufa na atmosfera continuam a aumentar. Apesar de todas as medidas que têm sido tomadas, em termos reais, as concentrações continuam a subir. Um dos efeitos deste aumento de temperatura é que a dinâmica da atmosfera está a sofrer alguma variação. Essa variação, nalguns casos, está a dar origem a fenómenos de tempo extremo que estão a afetar fortemente pessoas e regiões de todas as latitudes. Pela primeira vez, não há qualquer dúvida do que está a acontecer à dinâmica da atmosfera. O que nós não sabemos ainda é o que é que isso significa para cada um de nós.
O que é que este relatório diz que os anteriores não disseram?
Os relatórios do IPCC não são trabalhos científicos, são essencialmente resumos de trabalhos científicos, ou seja, são painéis que validam aquilo que se publicou durante dois, três ou quatro anos. Para cada questão o IPCC tenta avaliar se é inescapável, se é verdade a 100%, se é uma coisa muito provável, se é algo provável ou se é pouco provável. Foi assim que começou e por isso é que os primeiros relatórios do IPCC até eram pouco interessantes de ler, porque eles não eram nem dramáticos, nem tentavam meter medo a ninguém. Apenas tentavam distinguir o que se podia garantir que era ciência bem estabelecida do que era hipótese científica que ainda estava por validar. O que se passou nestes processos de avaliação é que, na maioria dos casos, passámos de situações prováveis para situações ou muito prováveis ou verdades confirmadas. Claro que a isso não é estranho o facto de, nos últimos anos, a capacidade de monitorizar o estado da atmosfera ter aumentado bastante devido aos satélites. Verificou-se que o que se observou estava em linha com o que os modelos previam de uma forma completamente limpa. Pior: verificou-se que na maioria dos casos eram piores as observações do que aquilo que os modelos previam. E isso levou a uma ação tipo “cartão vermelho”, como diz o senhor secretário-geral das Nações Unidas.
E deixa a conclusão clara de que há uma ligação direta e inequívoca entre a ação humana e o que está a acontecer ao clima?
Não há hoje em dia nenhuma dúvida sobre esse assunto. Que o CO2 [dióxido de carbono] na atmosfera leva ao seu aquecimento é conhecido pela Física desde o século XIX. É uma coisa completamente estabelecida pela ciência. Nem sequer é muito complicado de perceber o mecanismo. Que a ação humana é que leva ao aumento da concentração de CO2 também não há dúvida no essencial. Nós sabemos hoje em dia quais é que são as variações de CO2 na atmosfera que têm origem natural e aquelas que têm origem humana. Por exemplo, se vir o registo do CO2 na atmosfera na Terceira, para falarmos do caso do Atlântico, em que as medições são feitas perto da Serra de Santa Bárbara, onde não há indústria nem nenhuma fonte próxima de CO2, é capaz de ver que a variação de CO2 ao longo do ano corresponde à variação das estações e à variação do ciclo vegetativo. O sistema responde com alguma rapidez e não há dúvida nenhuma que temos primavera, verão, outono e inverno. Só que essa variação anual também está em cima de um trend e esse trend está sempre a subir desde que começou a revolução industrial. Diz-se: “mas já houve épocas da história da Terra em que tivemos concentrações de CO2 superiores à atual”. Já, não havia era o homem. A Geologia ensina que a Terra sofreu enormes variações ao longo da sua história e por isso é que temos, por exemplo, argilas vermelhas. As argilas vermelhas foram criadas numa altura em que atmosfera tinha um conjunto de características que não são as de hoje.
Quando diz que não há dúvida nenhuma entre a ação humana e o que está a acontecer ao clima, a verdade é que temos negacionistas, tal como nas vacinas.
Há quem negue no sentido de dizer, sim, mesmo que isto seja ação humana é preferível vivermos com este risco do que tomarmos medidas que vão baixar muito a qualidade de vida das pessoas. Na ideia de que se fizermos grandes restrições à emissão de CO2 a qualidade média de vida das pessoas pode baixar. Esse risco existe. Aliás, nós estamos de certa forma a experimentá-lo, porque a partir do momento em que uma parte da gestão do CO2 atmosférico passou para uma gestão económica que se chama mercado do carbono, há efeitos nos preços e nos custos das opções que são feitas. E a questão é saber até quando é que podemos aguentar esta mudança. Depois há um outro aspeto. Quando nós temos uma mudança, temos quem ganha e quem perde. O que vai acontecer é que o Saara passa um bocadinho mais para norte. Isso quer dizer que os países do Norte vão ter uns invernos mais tépidos e uns verões mais brilhantes? Vamos apenas mudar o clima de latitude? Devo dizer que não é verdade. É uma ideia simplista, mas que não corresponde à verdade porque a atmosfera é um sistema dinâmico mais complexo do que isso. O que se passa é que nós tivemos uma situação que correspondia a um certo tipo de estabilidade ao longo destes séculos e interrompemos essa estabilidade.
Sabemos qual será a nova estabilidade?
Existem projeções para a nova estabilidade, mas para sabermos qual é a nova estabilidade temos que, pelo menos, estabilizar o que estamos a fazer. Ora a humanidade está muito longe de estabilizar as emissões e enquanto continuarem as emissões continua o aquecimento. Qual é o limite máximo de aquecimento que podemos aguentar? O que foi fixado no Acordo de Paris foi 1,5 graus [centígrados].
Mas vamos ultrapassar isso.
Nessa altura havia quem dissesse que o que o Acordo de Paris propõe é ridículo, não vai dar efeito praticamente nenhum. Bem, tomáramos nós que o Acordo de Paris seja cumprido. E se nós passarmos 1,5 graus e se ultrapassarmos 2 e 2,5?
E vamos passar?
E vamos passar. O que diz o relatório é que esse limite de 1,5 vai ser conseguido dentro de alguns anos, o que significa que está ao nível da minha vida.
Que clima estamos a ter ou vamos ter em Portugal? Não eramos um país de furacões, por exemplo, e agora somos.
Não eramos um país atingido nem por furacões nem por tempestades tropicais. Temos tido mais atividade extrema do lado do Atlântico Norte e em particular nos Açores. Já tínhamos alguma coisa no passado e agora tivemos o Leslie.
Que atingiu fortemente a zona de Leiria, por exemplo.
Seguimos ao minuto nesse dia, cheios de receio que ele fosse passar numa área urbana muito densa. Felizmente, não foi o caso. Mas tão importante como o Leslie foram os fogos de junho de 2017. Nós não somos políticos, não temos nada a ver com política, certo? Em 2017, o que aconteceu em junho foi um fenómeno atmosférico profundamente anormal para aquilo a que estamos habituados.
Estamos a falar dos tais fenómenos extremos?
Estou a falar de um fenómeno extremo, estou a falar do downburst que foi o mais bem descrito downburst alguma vez verificado na Terra por uma razão infeliz. É que devido aos incêndios de Pedrógão havia muito fumo no ar, muitas partículas. O que os radares medem é a velocidade dessas partículas e os que nós tínhamos a funcionar mediram a velocidade em todo o fenómeno, o que muitas vezes não é fácil, porque apesar de estar a acontecer no ar, não o vemos. É o caso típico da turbulência no aeroporto da Madeira. Ela está lá, mas vê-la é um problema diferente. Neste caso, o sistema natural deu-nos oportunidade de ver o fenómeno em tempo real e observá-lo nas estações todas.
Vai repetir-se?
Estamos a ter estes picos de chuva que estão a deixar toda a gente um bocadinho aflita. E porque é que as pessoas estão a achar estranho? Temos uma situação em que de repente há 40 mm numa hora.
Daqui a uns tempos diremos se isto é uma mudança ou se é um caso particular, mas não nos podemos esquecer que tivemos agora uma chuvada em França que engoliu uma autoestrada. Tivemos as chuvas na Alemanha e na Bélgica com um impacto urbano completamente diabólico e não estamos a falar dos autarcas terem deixado entupir as canalizações ou que elas não existem. Estamos a falar da zona mais desenvolvida do mundo. Para este tipo de fenómenos extremos muito localizados não há infraestruturas, como nós as desenhamos hoje em dia, que resistam.
Vamos ter que redesenhar as cidades, por exemplo?
Ah sim. Eu diria que a Holanda já está a ver isso com outra seriedade porque é um país que vive abaixo do nível do mar e tem que atacar isso de outra maneira. Mas é evidente que as cidades e o espaço urbano vão ter que ter um novo desenho.
Seria necessário tomar outro tipo de medidas e o quanto antes?
Vai ser necessário começar a tomar algumas medidas mais estruturantes, mas chamo a atenção que estamos a falar de investimentos de grande volume. Seguramente que os políticos – e essa parte não é nossa felizmente – vão ter de tomar as suas medidas.
Não sendo uma preocupação sua…
É uma preocupação minha, não tenho é que a resolver. Diria que há muita gente atenta e que vai haver diferenças.
Mas sente que da parte política essa preocupação existe e que a preparação das instituições envolvidas neste tipo de fenómenos também existe? Por exemplo, a Proteção Civil está a olhar para os furacões da mesma forma que já olha para os fogos e para os sismos?
Sim, sim. Se pensar na Proteção Civil de há 20 anos, eles evoluíram tremendamente. O nível da Proteção Civil há 20 anos era incêndios em edifícios e pouco mais. O âmbito aumentou. Há meia dúzia de anos nem sequer havia responsáveis de Proteção Civil em todas as autarquias e hoje em dia já existem porque os cidadãos estão mais informados e percebem o que se pode fazer melhor. Os riscos também parecem ser mais importantes. Do lado da economia a situação, para mim, é completamente clara: nunca o sistema económico esteve tão atento aos registos naturais como agora, porque há muitos bens segurados.
No caso das seguradoras será uma grande preocupação?
As seguradoras começam a perceber que este problema também é delas. Era um problema dos cidadãos e passou a ser um problema das seguradoras. O sistema económico já percebe que tem também de participar no acompanhamento e na solução, sabendo-se, porém, que a humanidade tem sempre tendência para achar que é capaz de lidar. São os moinhos de vento do D. Quixote, acha que consegue resistir a uma grande intempérie. Não é verdade. Os fenómenos de tempo extremo envolvem energias muitíssimo grandes. Não tem a ver com “ah se não tivessem construído ali”. Não estamos a falar da mesma coisa. O Lorenzo, o furacão que passou por cima da ilha das Flores e junto do Faial, era um furacão previsto cujo percurso foi previsto com exatidão, por uma razão muito simples, ele nunca se desviou do seu caminho. Os furacões alimentam-se da energia disponível na água do mar e quando os furacões de maior dimensão passam pela região açoriana, normalmente, passam entre as ilhas, porque passam onde há energia disponível que é no mar. O Lorenzo era tão grande que as ilhas para ele não eram um problema, ele não via as ilhas. A chuva estava prevista, até estava prevista a energia que ia atingir todos os portos e, contudo, temos uma enorme incapacidade, porque é impossível tecnicamente resolver alguma coisa em 24 horas. Estou a falar de engenharia.
Em relação à literacia climática, em que ponto estamos em Portugal?
Não tenho dúvida nenhuma de que se há países que seguem o tempo e o clima é Portugal, a Inglaterra, a Irlanda, todos os países que têm fachada atlântica.
É perceber o clima ou acompanhar a meteorologia?
Até há diversos grupos de meteorologia amadores fantásticos e que são super-empenhados. Há centenas de estações meteorológicas. Se estamos preparados para acontecimentos diferentes dos anteriores, não, não estamos. Não estamos, mas os Estados Unidos também não. Se virem estes furacões que têm entrado para o Texas ou para o Luisiana, atenção que as pessoas não estão preparadas. Estão preparadas na Florida, sempre estiveram. Têm defesas em casa e já sabem o que hão de fazer às janelas. Quando veio o Leslie ninguém sabia o que havia de fazer. Esta necessidade de que é preciso de estabelecer conhecimento é verdade, mas também temos meios que nunca existiram, temos televisões todos os dias. Qualquer furacão que entra em Miami é seguido.
No caso de outros países, e os Estados Unidos são um bom exemplo, têm jornalistas especializados nesse tema. É um tema que abre os noticiários. Por cá, o clima é notícia quando existem estes fenómenos extremos.
Em 2012, quando entrei aqui no Instituto, a ideia da direção da RTP na altura é que não queria meteorologia na televisão. Muito mudou. Mudou – espero que também porque mudou a qualidade do nosso trabalho – mas porque mudou a perceção das pessoas. Os meios respondem ao que as pessoas querem saber. Se reparar bem nunca houve tanta pressão dos media para seguir este tipo de situações como agora.
Sente que os próprios media estão mais bem preparados ou ainda assiste a muito erro na informação que é veiculada?
Há cada vez menos erros, mesmo de grafia.
Mas erros de perceção, de conhecimento técnico são muito frequentes?
Não. Se comparar com as asneiras que ouço falar sobre a pandemia, diria que apesar de tudo estamos mais bem representados. No caso do clima e da meteorologia, o conhecimento começa a ser cada vez maior. Mas sabe que isso tem de ser assim. Quem sabia o que era um tsunami antes de Sumatra? Quem sabia o que era um downburst antes de junho de 2017? Só os especialistas. Hoje em dia, tudo isto entrou na linguagem de toda a gente. É curioso, não é? A globalização também é isso. Nós ao vermos o que se passa com os outros, vemos que também nos pode acontecer a nós. Agora, há um aspeto em que temos de melhorar: nós precisamos de mais exercícios. Os exercícios são muito caros. Fazer um exercício de um sismo custa bastante dinheiro. Mas temos de fazer, porque se não fazemos não estamos preparados para as situações.
Temos de fazer exercícios simulando furacões?
Pois temos.
Esse então é um dos fenómenos a que vamos assistir com mais frequência em Portugal. Se quisermos elencar os fenómenos extremos que vão ocorrer mais vezes em Portugal, quais são?
Flash floods – inundações rápidas – é provável que tenhamos mais situações deste género, stressando bastante as zonas estuarinas, porque o apport de água é muito grande, pondo também em grande stresse as zonas urbanas densas e os viadutos que são rios. Basta andar num viaduto hoje, com o pico da chuva, para ver que aquilo é um rio.
Vamos assistir a ondas de calor. Temos tido um número significativo de ondas de calor e isso tem, essencialmente, um problema relacionado com as pessoas de idade que vivem sozinhas, problemas de desidratação. Temos um problema estrutural relacionado com as secas por causa da produção agrícola. A agricultura também tem sido das áreas mais dinâmicas a tentar antecipar-se à mudança do clima. Temos um problema de água, se bem que o problema de água doce está bastante restringido à zona da bacia do Sado e à zona do Algarve, onde é preciso haver algum tipo de adaptações ou correções. Teremos um problema grave no que diz respeito à subida do nível do mar. Nisso é que não há volta a dar.
Quais são as previsões no curto prazo?
O mar tem subido 2,5 mm por ano. Acelerou agora um bocadinho mais, mas pense de outra forma. A Terra sempre teve subidas e descidas do mar, porque tem a ver com os ciclos de glaciação em que se tem os polos cobertos de gelo e os ciclos contrários em que não há praticamente gelo nos polos, toda a água está nos oceanos e os oceanos estão mais altos. Os geólogos sabem identificar em qualquer sítio onde é que está o nível máximo e o nível mínimo. Estamos a falar de 80 metros, à volta disto. É o limite que a água pode subir e descer. Nós, se continuarmos com um ciclo de aquecimento grande, estamos a fazer nalguns séculos aquilo que a Terra faz em 10 mil anos, o que é um problema. Isso significa que podemos ter subidas muito significativas de nível do mar. Portugal é um país razoavelmente montanhoso, é verdade, e há muitas regiões em que isso não é muito significativo porque tem falésias, tem rocha perto do mar. Mais metro menos metro, o impacto não é significativo.
Mas tudo isso não se vai erodindo?
Sim, mas atenção, temos alguns estuários de grande dimensão. Os estuários do Tejo e do Sado, do Vouga e da Formosa, pelo menos estes, são zonas razoavelmente extensas, de grande importância agrícola, onde vive muita gente. Estas zonas são seguramente muito afetadas pela subida do mar e a subida do mar não é só a água estar mais alta. É a água salgada entrar para os campos agrícolas. Esta situação vai obrigar a medidas de engenharia, a medidas de adaptação, deslocalização de pessoas, deslocalização de construção e a medidas que podem ter a ver com a utilização de técnicas de plantação ou de utilização dos espaços mais compatíveis com esta subida. Esse é um problema inexorável. Mesmo que nós agora parássemos, ele vai continuar a subir mais 200 anos. É certo como a morte e como os impostos, como costumo dizer, e é fácil de quantificar.
Olhando para as várias regiões do país – e já distribuiu alguns dos fenómenos extremos por algumas delas – vê que haja zonas que venham a ser mais afetadas do que outras? A questão do clima é global, mas ele não é democrático, afeta mais umas regiões do que outras.
Ele não é democrático. O Algarve está a ser razoavelmente mais afetado pela seca, porque está muito perto da transição da zona dita tropical. Quando a gente fala em zona tropical, as pessoas imaginam uma zona luxuriante, mas na verdade zona tropical do ponto de vista climático, é também a zona dos desertos. O Saara está a expandir-se, o que é que isso quer dizer? Quer dizer que se nós desenharmos a linha dos pontos em que está a chover 100 mm de água por ano, que é um valor insuficiente para manter a agricultura, e se pensarmos que isso é o limite do Saara e que ele está a progredir para norte e para sul, está a gerar migrações. A população subsaariana, sobretudo esta, está a emigrar. Atravessa o deserto e está a emigrar para a Europa. O Algarve está mais perto desta situação mediterrânica. Depois, nós temos dois portugais. Isso sabe-se desde o Orlando Ribeiro. Temos o Portugal mediterrânico, que será do Montejunto/Estrela para sul e temos o Portugal atlântico. O Portugal atlântico é sempre mais húmido e mais fresco e o Portugal mediterrânico mais quente e mais seco. O que estamos a ter é um extremar dessas situações. Vamos ter situações diferentes no interior e no litoral, no norte e no sul e nas zonas estuarinas e não estuarinas. Depois temos um panorama geral de migração das pessoas do interior para o litoral. De uma forma politicamente bastante incorreta, estamos na altura de ter que investir nas cidades.
Porque as zonas urbanas são aquelas em que os problemas se vão agravar?
Vão-se agudizar. Temos que investir mais nas cidades. Há vários planos feitos, seguramente bem feitos e usando o que os modelos nos indicam, mas do ponto de vista estrito da mudança climática eu diria que as cidades têm que ter uma atenção superior ao que têm tido.
Temos capacidade de evacuar uma cidade perante um fenómeno extremo?
Não temos. Não sei se assistiu a algumas evacuações na Califórnia devido aos fogos. Foram catastróficas e olhe que a América tem estradas largas e muitos carros com muita potência, mas a evacuação por carro é um problema em todo o mundo. Ninguém sabe evacuar carros. Sabem evacuar a pé, que funciona para os tsunamis, porque basta 200 ou 300 metros, mas não funciona para os fogos florestais.
Mas o objetivo dos planos municipais de emergência é identificar determinados sítios a que as pessoas podem e devem recorrer.
Exatamente. Há muitos municípios que têm trabalhado nessa área e têm feito muito pensamento estratégico sobre esse assunto, mas a ideia de que temos que investir em Lisboa, no Porto ou em Leiria não é muito popular, porque são vistos como locais privilegiados à partida e onde há mais capacidade económica. Mas também são os locais que têm uma densidade de pessoas muitíssimo superior e, perante acontecimentos pontuais muito intensos relacionados com a mudança climática, vai ser preciso repensar muitas coisas. Somos muitos preocupados quando um acidente está a ocorrer, temos imensa pena depois de ele ter ocorrido e uma semana depois já esquecemos tudo. Isto é a verdade. Existe uma grande dificuldade em preparar as pessoas para um acontecimento raro. Estamos preparados para um acontecimento frequente, como levar o guarda-chuva porque vai chover. Mas dizer assim “todos os anos há um piano que te vai cair em cima da cabeça”, não sabemos preparar as pessoas para esse acontecimento. Não faz parte da nossa forma de viver.
Mesmo com mais informação?
Mesmo com mais informação. A resposta tem de ser mais estrutural, ou seja, as cidades têm que ter mais zonas que não congestionem com automóveis se precisarem de ser evacuadas, a capacidade de escoamento de água, nalguns casos tem de ser revista. A possibilidade de termos um furacão a fazer landing outra vez pode levar a que as pessoas tenham de estar preparadas para saberem como fechar as portas, as janelas, que tipo de estores é que são possíveis. Tudo isso tem de ser repensado.
Daqui a uns séculos, a vida na Terra vai continuar a ser possível e viável?
Primeiro, vamos ver se chegamos lá. Não é garantido que cheguemos lá. Estamos a falar em 2021. Daqui a 10 anos pense no que esteve aqui a falar e veja em que estado é que está. Pode estar em dois: tivemos capacidade de alterar e as coisas são diferentes ou, pelo menos, vemos a luz ao fundo do túnel ou pode dizer que aumentar 3,5 graus não é muito.
Podemos dizer isso?
Não. Com 3,5 graus já tem o diabo na atmosfera.
Mas conseguimos travar alguma coisa? O que é que já não se consegue travar?
O oceano e um ambiente um bocadinho mais energético também não me parece que consigamos travar.
O aumento da água do mar não prejudica os recursos de água doce?
Em princípio não, porque o aumento da temperatura na Terra vai aumentar a evaporação do oceano. Teoricamente até vai haver um bocadinho mais de água na atmosfera. A água nunca fica muito tempo na atmosfera, cai. Vai do estado sólido, líquido e gasoso, precipita e vem para a Terra. É por isso que os países que estão fora desta zona dita mediterrânica até têm tido mais precipitação, por isso é que se vê inundações brutais na Inglaterra, na Escócia, no norte da Europa, na Polónia. Por acaso estamos na zona que perde precipitação, estamos numa zona de fronteira. Daqui a alguns anos já somos capazes de fazer um balanço de quem é que ganhou e quem é que perdeu, mas existem mudanças que são tão rápidas que vão ter que levar a uma ação humana objetiva. Sempre houve mudanças, não com esta amplitude. Qual é o problema agora diferente do passado? É que agora está a acontecer muito depressa, agora já não é o seu filho, o neto ou o bisneto que tem de pensar no assunto, é você, no seu tempo de vida. É esta a questão da mudança dentro de uma única geração que cria um enorme stresse até psicológico. É criar-se a ideia de que estamos a brincar com um sistema que não dominamos. Quando aparece a Greta Thunberg que desencadeia reações tão excessivas por parte das pessoas, tanto de apoio como de desapoio, é aparecer um sinal de incomodidade que tem de ser compreendido. Pode dizer que é histeria? Se calhar, mas não interessa. É como nós estarmos aborrecidos de ter febre. A febre é apenas um sintoma, a doença é outra coisa. E a doença está lá. A doença é que temos todo um sistema que precisa de produzir CO2.
Se quisesse encontrar uma metáfora para descrever o caminho que estamos a fazer em matéria climática, o que poderia dizer?
O que tenho dito sempre é que isto é uma espécie de bola de neve que está a rolar ao princípio. Ela está a rolar ainda devagar, mas as bolas de neve vão aumentando à medida que rolam e cada vez são mais difíceis de parar. Nós estamos nessa situação. De vez em quando, há quem ponha um pauzinho para tentar que a bola de neve pare e ela tem um pequeno soluço, mas continua a rodar. Do ponto de vista da alteração significativa a que se chama hoje em dia transição ambiental, transição energética e transição digital eu diria que muito está a ser pensado, algo está a ser feito e poucos são os resultados. Basta ver que a curva de concentração de CO2 continua imutavelmente a subir. A partir do próximo ano, vamos ter um serviço de CO2 que vai ser produzido pelo Centro Europeu de Previsão do Tempo para o mundo inteiro com uma medição direta por satélite de quem está a emitir e de quem está a sequestrar. Eu diria que quando tivermos as primeiras imagens do balanço de CO2 na atmosfera vamos ter surpresas. Mas também vamos ter uma visão objetiva do problema e depois temos de atuar em conformidade. Só que temos aqui uma contradição insanável: temos um problema global e não temos um governo global. Temos um problema global e temos governos nacionais e às vezes nem isso. Será que vamos encontrar capacidade de fazer isto? Ela é mais fácil se for possível desenhar soluções tecnológicas que mantenham a qualidade de vida das pessoas, mais difícil se não for. É mais fácil ainda se as soluções tecnológicas melhorarem a qualidade de vida das pessoas e não é impossível, mas há ainda muitas coisas por compreender.
A descarbonização é o nosso maior desafio?
A descarbonização é o maior desafio da humanidade desde sempre, porque ela para ser conseguida, mantendo o nível económico das populações, não é um assunto que se possa considerar fechado. Ou nós conseguimos redesenhar isto de uma outra forma e então temos capacidade de fazer uma transição sem custo quase, ou então vamos ter que fazer um compromisso entre aquilo que queremos ganhar e aquilo que estamos dispostos a perder.
(Uma última questão relacionada com as migrações. Aquilo que se está a passar em África com a seca é responsabilidade nossa, do mundo ocidental também?
Também.
Ao não conseguirmos acolher e lidar com o problema dos migrantes estamos a abandoná-los duas vezes?
De certa forma pode dizer-se isso, e isso é uma leitura perfeitamente razoável e admissível, mas a verdade é que muitas das migrações ocorrem porque os países não têm mostrado capacidade de se gerir. Cada indivíduo em si não tem qualquer responsabilidade, não está nas mãos dele resolver. A sociedade no seu conjunto já teria mais responsabilidades para ter uma organização que fosse combativa. Os países ditos europeus têm tido uma enorme dificuldade de receber imigrantes… bem, vamos ser realistas. Os países europeus têm recebido muitíssimos imigrantes, eles não têm é capacidade de admitir que estão a receber e que os querem receber. São duas coisas muito diferentes. Se não tivéssemos imigrantes em Portugal teríamos um balanço negativo do Censos, nas zonas de agricultura da costa alentejana e mesmo do Algarve não teríamos ninguém e mesmo na pesca teríamos poucos pescadores. Estamos a receber imigrantes. O que é mais difícil é que nós queremos receber os melhores, os bons, escolhermos ficar com a nata. Quem está desesperado não é necessariamente quem é melhor, são todos e tem que haver um compromisso entre receber os imigrantes e, por outro lado, aumentar o investimento nas regiões de onde eles provêm de forma que também tenham direito a ter uma família estável no sítio de onde são. O que está a faltar ainda é a capacidade de organização dos estados mais pobres de uma forma sustentável. Isso ainda não existe e se há coisa que ninguém consegue exportar é desenvolvimento. Somos capazes de apoiar, se houver capacidade intrínseca para desenvolver, mas são muitos fáceis as discussões de que os países usam mal os fundos e que quem recebe dinheiro é sempre pior. Tudo isso é fácil, isso no fundo quer dizer que não somos capazes de exportar desenvolvimento. Se nós queremos tê-lo, tem de partir de dentro de nós e isso é muito mais difícil de fazer porque significa uma mudança de vida. Existe muita literatura sobre o assunto: a partir de que ponto é que nós, ao querermos ser mais desenvolvidos, não nos estamos todos a escravizar uns aos outros?)